quinta-feira, agosto 02, 2007

A última Águia-real do Parque Nacional da Peneda-Gerês

"O jipe sobe lento a encosta da serra da Peneda, o conta quilómetros chega a fixar-se no 10. Para trás ficou a última aldeia. Rumamos ao Ramiscal [Serra do Soajo], o veículo terá de ficar para trás. Faz-se a pé o caminho, a descer por um vale escarpado. Percurso que Miguel Dantas da Gama conhece bem. Há anos, ao fim-de-semana, manhã cedo, deixa o Porto em direcção a Arcos de Valdevez para, no coração da natureza, continuar uma devoção antiga: observar a última águia real.

A enorme ave solitária tem o seu refúgio no vale do Ramiscal, uma das zonas mais sensíveis do Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG). É nessa zona, devastada pelas chamas no ano passado, que Miguel concentra a observação na rainha das aves de rapina.

Em Agosto de 2003 viu-a pela última vez acompanhada pelo macho. Desde aí, o investigador segue a vida da última águia-real do PNPG. Viu-a fazer ninho pela última vez, viu os ovos que ela já não conseguiu chocar. E persiste. Os poucos habitantes do parque, que habituaram a cruzar-se com o ambientalista nos sítios menos previsíveis, chamam-lhe "o rapaz da águia".

As peregrinações, quase sempre solitárias, passaram a ter um objectivo definido: a publicação de um livro sobre a última águia do Gerês, acompanhado de um DVD, onde estão registados os derradeiros voos. Em casa, guarda já 27 cassetes de uma hora cada. O próximo passo é editar os filmes e fazer um vídeo com as melhores imagens.

Este ambientalista, fundador da Quercus e mais tarde do Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens (FAPAS), licenciado em Engenharia Electrotécnica, acompanha, ao longo da semana, projectos de grandes barragens numa multinacional. Sempre a pensar no sábado, no recôndito Ramiscal. Vai ao ginásio, três vezes por semana, porque seguir o voo da águia exige um enorme esforço físico. Subir e descer montes, andar quilómetros pela montanha pressupõe preparação.

Aos 48 anos, Miguel Dantas da Gama, descendente do romancista Arnaldo Gama, reconhece que a paixão pelo Gerês começou quando em criança os pais o levavam a passear por lá. Há 30 anos, de forma sistemática, percorre o parque nacional, e é, seguramente, um dos que melhor conhecem esta paisagem protegida. Já publicou em livro trabalhos sobre a cabra e o galo montês do Gerês e sobre o pinheiro silvestre, uma espécie autóctone do PNPG.

Sustos? "Já apanhei alguns", reconhece, embora nada que fizesse arrefecer o amor pela natureza. Um dia, a escalar um penhasco, colocou a mão a escassos centímetros de uma víbora. Em caminhadas, que por vezes chegam aos 40 quilómetros, também já se viu "aflito": uma vez foi a tempestade que o encontrou, uma outra foi o excesso de calor. É por isso que no jipe tem sempre um chapéu, protector solar e água, além de botas de montanha, uns binóculos e a câmara de filmar.

Num quente sábado de Julho, o DN acompanha o ambientalista no passeio até ao Ramiscal. A observação faz-se num penhasco, a meia encosta, sobranceiro ao vale. Do lado de lá, a vegetação rasteira renasce depois do incêndio que destruiu um precioso carvalhal. "Fica verde e dizem, por isso, que está a regenerar, mas aquilo não são carvalhos", sublinha , referindo-se às declarações de responsáveis do Ministério do Ambiente que minimizam os efeitos do incêndio. Mais à frente existe a maior concentração de azevinho em Portugal, "alguns com dois metros de perímetro", destaca.

A conversa é interrompida. A observação exige silêncio. Há dias "via-a a rasar os ninhos dos falcões e dos gaviões. Ela deixava-os nervosos, obrigando-os a abandonar o ninho e a segui-la", recorda com um brilho nos olhos. Dantas da Gama tem consciência de que a vida da águia está a findar. "Quando morreu o macho, achei que ela ia durar um ano, mas tem dado que fazer", ironiza. Já 'viúva', ela continuava a levar paus para o ninho". Mas a sua águia cultiva a viuvez, de vez em quando outras aves de rapina sobrevoam o Ramiscal e "ela enxota-as".

A última águia não apareceu, terá pressentido a presença de estranhos, demasiado faladores. Quanto a Dantas da Gama, obrigámo-lo a cometer um pequeno sacrilégio: passou demasiado tempo de costas para o vale."

Paula Ferreira

Fonte: Diário de Noticías - 28-7-007



Consulta de Leitura afins:

Canto final da última águia-real no Gerês - DN - 22-05-005

A Rainha do Gerês - Expresso

A propósito dos incêndios na Serra do Soajo, no Verão de 2006, ver excelente descrição de Ventor

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